Imprimir a realidade sem recorrer ao documentarismo é de um empenho digno de todos os méritos, especialmente quando o marasmo do cotidiano parece ser algo tão tentador de expor na tela (muito que por tendências estéticas) ao invés de se debruçar no que realmente importa: o misto de emoções que as personagens sentem e têm que enfrentar ao longo do dia diante de conflitos inesperados; muitas vezes, maior que elas. Nas melhores retratações ficcionais, as adversidades bem escritas e encenadas fazem-nos afligir e nos revoltar junto com os protagonistas carentes de apoio – e estar remotamente ao lado delas é não menos do que uma experiência catártica. Ursa, primeiro longa de William de Oliveira (Aquele Casal), reitera o tato ímpar do cineasta na criação de histórias sensíveis cuja empatia só tende a crescer a cada cena.
(© Imagística Filmes/Divulgação) |
É válido apontar como William aproveita essa trama para escancarar o mal dispersado por uma parcela da população brasileira que se orgulha de ser revoltosa, violenta em ações e palavras mesmo se auto-proclamando "cidadãos de bem". Uma parcela que age em bandos agressivos, concordando com os discursos coléricos de apresentadores de telejornais policiais e que exige medidas legais mesmo deturpando as mesmas supondo agirem em prol da justiça. Para tal retratação, o diretor enfatiza o deslocamento de seus protagonistas no quadro, a instabilidade emocional replicada por movimentos similares da fotografia de Maurício Baggio, a crueldade da vizinhança (capitaneada por um Paulo Matos nervoso) potencializada por um contra-plongée e a ênfase em compor os planos dispondo os personagens atrás de elementos listrados. Só mesmo as bestas que saíram de suas jaulas e estão soltas para cometer o mal, até mesmo por palavras ao ouvido de uma mãe.
(© Imagística Filmes/Divulgação) |
O elenco também é responsável pelo impacto causado em Ursa. Diego Perin fica a cargo de expressar o sufoco de seu personagem com tantos acontecimentos ruins em sequência e, na falta de assistência e respostas, troveja em quem ainda lhe mede algum esforço – daí a participação de Cinara Vitor, sempre ótima. Ainda assim, nada se compara a transformação colossal de Adriana Sottomaior ao longo do filme. Surpreendente, a atriz concede uma performance exemplar e digna de todos os méritos ao transitar entre a fraqueza acumulada por tantas injúrias e por não se dar por vencida encontrando um meio de se revigorar só pelo ato de desamarrar o cabelo e andar de cabeça erguida pelo corredor do hospital. Um banho em casa e o preparo para uma noite de vigília completam esse exorcismo tal como aqueles de tantas final girls dos filmes de terror – um respiro silencioso passados tantos ataques dos monstros reais.
Plausível por sua narrativa madura, por sua sensibilidade tangível (rara entre os filmes conterrâneos) e pelo porte da produção de toda a equipe da Imagística Filmes, Ursa é um dos melhores filmes que já passaram pela Mirada Paranaense do Olhar de Cinema. Em uma era de ânimos tão exaltados, é importante que sejamos bem convidados a parar e ponderar os limites da sanidade perante um dia difícil.
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