domingo, 24 de fevereiro de 2019

Roma | CRÍTICA


Anunciado como um dos projetos mais pessoais da carreira do cineasta Alfonso Cuarón (Gravidade, Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban), Roma é um filme de múltiplas sensações cinematográficas executadas tão impecáveis que, considerando suas tantas láureas e seu principal meio de exibição, deve dizer muito sobre a forma como veremos o Cinema daqui em diante. Além disso, mais do que uma história semibiográfica repleta de memórias e reconstituições afetivas, é sublime atestar como Cuarón faz de suas impressões do México de 1971 em um soberbo retrato que dá um novo significado ao realismo mágico.

Assumindo também as posições de roteirista e diretor de fotografia, Cuarón apresenta a vida de Cleo (Yalitza Aparicio), uma empregada doméstica de uma casa situada no bairro relativamente nobre que dá título ao filme, concentrando-se desde servir o café da manhã ao chá para o patrão no final da noite e ainda dividir seu carinho pelos quatro filhos da Sra. Sofía (Marina de Tavira), que parecem nutrir uma consideração maior pela introvertida moça do que pela própria mãe. Mesmo tão atarefada, Cleo consegue arranjar para si um tempinho para se divertir, ir ao cinema e até se apaixonar, embora não  tarde a saber que, mesmo com a evidente diferença de classe e etnia, ela virá a ser o principal elo de união e força naquela casa.

(© Alfonso Cuarón / Netflix / Divulgação)

Engana-se, entretanto, quem espera que o filme seja uma versão mexicana de Que Horas Ela Volta? considerando o tradicional embate entre empregada e patroa. Apesar de alguns instantes presenciados que chegam a apertar o coração (que mal havia em deixar Cleo assistindo ao programa de comédia na TV junto?), o texto de Cuarón é honesto ao evitar maniqueísmos que tornariam a narrativa um tanto quanto tóxica. Em Roma, veem-se injustiças, risadas, choros, alegrias, dores, rebeliões e até uma atmosfera mística mediante uma prática coletiva de kung fu.

Reconhecido por investir em planos-sequências sempre inventivos, é estontante ver o trabalho fotográfico que Cuarón alcança mesmo desprovido de seu habitual parceiro do setor, o tri-oscarizado Emmanuel Lubezki (O Regresso, Birdman). Utilizando as câmeras ARRI Alexa com sensor de alto formato de 65mm, o cineasta propõe uma verdadeira aula de cinematografia ao demonstrar o que uma câmera pode fazer e captar entre cenas de longa duração e, não obstante, sob o espectro monocromático que muitos diriam ser um recurso antiquado ou pretensioso.

(© Alfonso Cuarón / Netflix / Divulgação)

Acontece que, com as diversas panorâmicas de enquadramentos amplos que o diretor executa economizando cortes burocráticos de planos e contra-planos, pouco fazendo questão de closes a não ser quando se aproxima ou compreende a importância de tal objeto e/ou personagem, tal decisão estética só magnifica a experiência de emoções mistas ao longo das mais de duas horas de projeção, demonstrando um impecável tratamento fotográfico de contrastes e texturas que chega a humilhar qualquer produção da Marvel Studios que, ironicamente, também se aproveita do mesmo equipamento.

Alfonso Cuarón dirige Yalitza Aparicio em cena do filme (© Netflix / Divulgação)

Considerando, enfim, que o trabalho de som é outro espetáculo a parte ao complementar a narrativa e que o seu leque de situações que compreendem desde uma ansiosa reencenação da chegada do pai com seu carrão na garagem apertada à curiosa decisão de não se legendar os diálogos em inglês, privando tanto Cleo quanto o espectador do entendimento daquelas falas repugnantemente esnobes, o filme ainda demonstra uma crescente ode à cinefilia que só Cuarón, um astronauta entre os gêneros fílmicos, poderia prover tamanha reverência. Mais do que uma obra sobre uma época que ainda ecoa com o nosso cotidiano e costumes, Roma é um encantador exemplo de como o Cinema, mesmo reduzido às telas da Netflix, ainda pode contar histórias originais e inspiradoras.



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