segunda-feira, 27 de março de 2017

Fragmentado | CRÍTICA



Uma das características do suspense, ditas por ninguém menos que Alfred Hitchcock, é gerar expectativas diante do desdobramento de uma situação de risco da qual o espectador possui todos os dados e, assim, antecipar o medo. Aficionado, M. Night Shyamalan se tornou uma referência ao aplicar as regras do gênero e entregar tramas envolventes cujas surpreendentes revelações finais flertavam também com a sobrenaturalidade. Em sua segunda parceria com a Blumhouse (Atividade Paranormal, Sobrenatural) que rendeu o bom A Visita em 2015, o diretor e roteirista indiano prova que mantém o público em suas mãos mesmo com uma produção de orçamento modesto, ainda que não tenha se livrado do seu fraco por artifícios absurdos.


De um mero thriller de sequestro, Shyamalan faz de Fragmentado um estudo sobre as sequelas dos abusos enfrentados durante a vida, sejam eles físicos e/ou psicólogicos, e o que eles trazem em consequência. Há aqueles(as) que dificilmente se recuperarão de tamanho trauma enquanto outros se enrijecem depois de tantos insultos e dores, adquirindo aí uma imunidade inquebrável; existindo também uma parcela rara que, em meio a suas confabulações, passa a acreditar e vivenciar aquilo que criou mentalmente, resultando em uma forma de escape que converge em personalidades coletivas, seja para o bem (próprio) ou para o mal (alheio).



Assim, Fragmentado começa em uma festa de aniversário onde a maioria das pessoas presentes são meninas adolescentes de bom nível sociocultural, apesar de ignorarem a presença de Casey Cooke (Anya Taylor-Joy, em talento progressivo desde A Bruxa), a retraída colega da turma que só foi convidada "por educação" pela aniversariante. Após a festa, o que era pra ser uma típica carona solidária oferecida pelo pai de Claire (Haley Lu Richardson), Casey se vê sentada ao lado de um sujeito completamente diferente que assume o banco do motorista e, sem receios, coloca as três garotas pra dormir. Percebendo que estão confinadas a um cômodo sem janelas, um banheiro e uma porta, Casey, Claire e Marcia se veem diante do asséptico e observativo Dennis (James McAvoy), que lhes impõe suas próprias e estritas regras. Imposições estas que Casey parece a única a enxergar brechas e tentar um meio inteligente de fugir, ainda mais quando seu sequestrador passa a apresentar comportamentos distintos a cada visita ou conversas fora do cômodo.

Tão logo a notícia do sequestro se espalha e chega aos ouvidos da Dra. Karen Fletcher (Betty Buckley), uma psiquiatra especialista em Transtorno de Identidade Dissociativa, que, entretanto, parece mais interessada no e-mail enviado por Barry, seu maior estudo de caso e que revela uma persona completamente diferente de Dennis: um afetado e afável estilista sempre com uma pasta em mãos para apresentar seus croquis. Ao passo em que cada sessão de terapia é sempre conduzida com um ar de tensão (afinal, já sabemos o quão insano é o sujeito), Shyamalan aproveita a psiquiatra como um elemento de credibilidade científica para a multi-caracterização de seu antagonista, investindo até mesmo numa supérflua sequência envolvendo uma vídeo-conferência sobre o referido transtorno e assim discorrendo o fato de que seu paciente tem nada mais, nada menos que, 23 personalidades. O comportamento de Barry passa a ficar mais estranho a cada ida ao escritório e a Dra. Fletcher, no alto de seu renome (a ponto de oferecer chocolates Lindt), não é ingênua de perceber que algo de ruim está acontecendo (ou por vir) no meio dessa crise de identidades.



Considerando o fato de a narrativa adentrar cada vez mais num lugar onde a psicanálise cede espaço para uma fantasia sombria, apesar de interrompida por flashbacks da conturbada infância de Casey, vale notar o quanto o diretor mantém seu apreço pelos mínimos detalhes narrativos que tanto contribuem para o estabelecimento do suspense, sobretudo quanto aos elementos cênicos. Se é difícil prever o local do cativeiro vide os enquadramentos fechados que Shyamalan emprega em sua decupagem (É o porão de uma casa? É uma fábrica abandonada?), a presença de alguns objetos em segundo plano inferem pistas sobre o espaço em questão ou até mesmo informações sobre o perturbado sequestrador que, por sua vez, em performances soberbas de James McAvoy, parte da voz de língua presa e abobada de seu infantil Hedwig para a meticulosidade da entonação embargada de Dennis em sutis trocas de feições sem que estas pareçam caricatas. Destaque também para as vestimentas de cores, cortes e tecidos diferenciados, assim como para a variação da temperatura de luz no cômodo externo ao quarto das garotas, reforçando o caráter de cada "pessoa" que surge em inesperadas ocasiões.




Denso e intrigante até o último segundo (e isso inclui a bem-vinda cena pós-créditos), Fragmentado (Split, no original) pode não agradar a todos, ainda mais levando em consideração sua montagem que faz jus ao título e seu clímax que foge do habitual como é bem típico das obras assinadas por Shyamalan, mas não há dúvidas de que, desde sua atenção aos pormenores, o diretor ainda sabe conduzir um bom thriller, daqueles que repercutem mesmo horas depois da sessão.




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