Não é de hoje que Hollywood tenta adaptar grandes sucessos da cultura pop japonesa que, em maior parte, resultam em longas-metragens particularmente decepcionantes – exceções a parte quando um ou outro diretor empresta a admirada estética oriental e bem aplica em suas obras que lhe concedem até o título de visionário tamanho repertório eclético. Por outro lado, as primeiras imagens divulgadas do live action de Ghost In The Shell sugeriam o indício de uma plausível sobrevida às infames adaptações a julgar por seu material bastante fiel às origens e agora, diante de sua experiência plena, o que se vê é uma sucessão de imagens deslumbrantes cuja trama futurista não consegue se desvencilhar das crises de identidades narrativas.
Enquanto a microchipagem humana é, por ora, apenas uma tímida e discutível realidade, chegará o dia ao qual as pessoas abraçarão os implantes cibernéticos em prol de sua vocação ou de seu bem-estar, sejam eles vitais ou meramente cosméticos, assim como a inserção e extração de memórias onde verdades, mentiras e fantasias parecem cada vez mais a mesma coisa. É nesse cenário um tanto promissor (e um pouco preocupante) que a Hanka Robotics apresenta sua primeira ciborgue de corpo sintético, com cérebro, consciência e a alma humana da Major (Scarlett Johansson), resgatada de um barco de refugiados e aprimorada para ser uma agente superior aos demais integrantes da Seção 9, a instituição de operações antiterroristas chefiada por Aramaki (Takeshi Kitano) e que, após um atentado com vítimas importantes da empresa de robótica, empreende na busca do hacker e assassino chamado Kuze (Michael Pitt). Junto do colega Batou (Pilou Asbæk), Major instiga-se cada vez mais na missão e em sua curiosidade existencial por seu passado cada vez mais fragmentado.
Materializando a cidade heterotópica (que não vê outra forma de crescer senão verticalmente) dona de prédios colossais carregados de letreiros tal como no mangá e anime original de 1995, além das diversas inspirações em Blade Runner e seus tridimensionalizados hologramas de marcas globalizadas, A Vigilante do Amanhã (como o filme foi intitulado por aqui) é primoroso em seu design de produção que não só recria o que já era conhecido, com suas camadas de construções de épocas distintas, como acresce e refina muitos elementos para os olhos do público exigente deste século. É primoroso o trabalho da Weta Workshop na construção dos adereços tecnológicos e que muitas vezes dispensam efeitos digitais, surpreendendo com as peças da montagem da Major e os animatronics das gueixas, além da peculiaridade das armas entre outros apetrechos inesperados. Nesse aspecto, que não se esquece de incluir os traços quadrados do carro do Batou e a ode às luzes neon, nenhum fã precisa botar defeito.
É no roteiro assinado por Jamie Moss (Os Reis da Rua) e William Wheller (Ray Donovan), porém, que residem as maiores ressalvas do longa. Ainda que não faltem sequências reconstituídas quadro-a-quadro de forma a venerar as composições emblemáticas da animação, os incidentes inéditos possuem uma eficiência arbitrária. Se ter Batou explicando sobre as vantagens de seus novos "olhos" soa divertido, ouvir personagens recitando procedimentos prestes a serem mostrados em tela surge como um didatismo redundante e previsível que, na contra-mão, poderia render um melhor desenvolvimento de seus personagens coadjuvantes. Resta a Juliette Binoche bancar a típica médica orgulhosa, mas gradativamente ressentida em troca de empatia; já Michael Pitt chama a atenção por seu pertinente vilão típico daqueles que estão sempre à frente dos heróis, todavia relegado a explicar a maior parte do tempo em cena. Figura de peso do cinema japonês, Takeshi Kitano soma ao seu papel que passa a ter uma importância súbita da metade do filme em diante, com infelizes falas generalizadas.
Tendo dirigido Branca de Neve e o Caçador, Rupert Sanders apresenta uma boa condução das cenas de ação inserindo movimentos rápidos ou em slow motion quando se faz necessário, sendo a sequência do ataque das gueixas no hotel e o atentado com o caminhão de lixo seus melhores momentos. Só é mesmo uma pena que o conflito narrativo entre a necessidade de ser um filme de ação (voltado às grandes audiências) ou um drama introspectivo (cult como o anime ficou por seu existencialismo) acabem prejudicando a experiência em uma mescla irregular de ambos e, até chegar ao clímax, salvando algumas comoventes revelações, a maioria das cenas já não impressionam mais.
Assim, não espere de A Vigilante do Amanhã: Ghost In The Shell um novo monólogo filosófico tal como Rutger Hauer fez cair lágrimas na chuva em Blade Runner ou a violência gráfica estilizada de Matrix e Dredd, ou uma argumentada luta contra o sistema própria do gênero cyberpunk. Em meio a brevidade reflexiva de seus discursos, num tudo, o que se vê é um bom filme explícito em seus acertos artísticos e técnicos, na disposição de Scarlett Johansson ao incorporar a sua personagem, na sua miscigenação no elenco e na apresentação de potenciais planos simbólicos que ecoam os exageros da atualíssima rotina de aparências virtuais em troca de um status artificial e momentâneo.
Aí, quem sabe, também haverá o dia onde as pessoas desejarão voltarem a ser mais humanas, algo que este Ghost In The Shell também esmerou e esteve perto de alcançar.
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