terça-feira, 21 de abril de 2020

Better Call Saul (5ª Temporada) | CRÍTICA


A quinta temporada de Better Call Saul (2020) é a primeira temporada de Saul Goodman em estado bruto. O advogado de comportamento tipicamente desviante e inovador começou a atender em Albuquerque sob esse novo nome. A construção do personagem que tanto chamou atenção em Breaking Bad a ponto de ganhar um spin-off foi lenta e exigiu dos espectadores uma boa dose de paciência com os criadores Vince Gilligan e Peter Gould que, provavelmente, irão manter até o final da série a bem-sucedida dependência dos estudos sobre construção de personagens, principalmente aqueles que dizem respeito à jornada do herói, ou seja, em BCS, os personagens são o centro de um universo no qual tudo o mais orbita.
Digo isso porque os respectivos showrunners alteraram minimamente a fórmula para fazer com que os personagens interpretados pelo ator Bob Odenkirk fossem menos sombrios do que aqueles interpretados por Bryan Cranston, especificamente Walter White e Heisenberg. A principal mudança para isso foi a intensidade da socialização aos quais os personagens foram submetidos ao longo das séries; por exemplo, encontramos Heisenberg já na 1ª Temporada e pouco sabemos de Walter White antes de Skyler, visto que a Gray Matter, Gretchen e Elliott Schwartz são peças secundárias na narrativa. Reside aqui a obscuridade de White/Heisenberg, pois o câncer é uma variável importante de explicação, mas não única. Já dos personagens interpretados por Odenkirk sabemos praticamente tudo: sua infância suburbana e o comércio da família, sua juventude e os pequenos golpes nas proximidades de Chicago que o notabilizaram como Slippin' Jimmy (uma rotulação com contornos sociológicos interessantes), seu período como funcionário na HHM, seu início na defensoria pública como advogado James McGill, assim como sua conturbada relação com o irmão, sua ascensão como Saul Goodman e seu ostracismo como o senhor Gene Takavic, o gerente de uma franquia em Omaha, Nebraska.

Todo esse caldo serve para deixar algo bem claro: a história dos personagens, assim como a construção deles sempre foi a joia da coroa da série e a penúltima temporada veio para consolidar isso.


Contudo, é importante salientar que, embora isso seja a sua fortaleza, desde o início, como mencionei, Better Call Saul instrumentaliza outros elementos da arte a seu favor, ou seja, o trabalho de direção cinematográfica seleciona e controla a mise-en-scène para além da encenação (comportamento dos personagens) e alguns episódios nessa temporada deixam isso em evidência. A respeito disso um dos mais interessantes é o episódio "50% Off", no qual Norberto Barba (Grimm) monta um cenário para dar conta de nos entregar referências sobre gostos subjetivos que se manifestam objetivamente na vida de Goodman, um advogado cinéfilo. Em determinado momento do referido episódio, Saul passa algumas camisas enquanto conversa ao telefone. Ao fundo, vemos o cartaz do filme The Thrill Hunter (1933). O filme, com pigmentos autobiográficos, tem como protagonista Buck Crosby, interpretado por Buck Jones. O personagem de Jones se notabiliza por assumir tarefas das mais variadas e das quais não tinha aptidão, como pilotar um carro de corrida ou até mesmo um avião. As tarefas são assumidas em decorrência de seu interesse por uma garota, por isso se vangloria no decorrer da película, ou seja, Crosby é um herói de muitas faces, embora todas elas sejam boas.


Ainda sobre os cenários, muitas escolhas tiveram como intenção dar o antagonismo necessário a algumas locações recorrentes na série, mas nem sempre exploradas como deveriam. Se Robert Flaherty elege o Ártico como antagonista em Nanook, o Esquimó (1922), Gilligan coloca o deserto de uma vez por todas em evidência em "Bagman". Para o diretor, o deserto é um personagem importante em BCS. Tão importante que os planos abertos propositalmente diminuem os personagens, sejam heróis, anti-heróis ou vilões. Ninguém é maior que o deserto. Ele humilha até aqueles que se acham deuses. O deserto, nesse episódio especificamente, também se constitui como a “barriga de baleia” de Saul Goodman, pois seu figurino remete às narrativas bíblicas, afinal, como não o associar a um hebreu do período veterotestamentário com aquele pano em sua cabeça? É também nele que Saul Goodman recebe enquadramentos em plongée e Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks), sua voz espiritual naquela situação, ganha um enquadramento em contra plongée, enquanto uma caminhonete se constitui como o inimigo que não cessa de andar ao derredor. Talvez não tenhamos outro episódio em BCS mais espiritual, mais imerso no monomito do que "Bagman".



Como um todo, a 5ª temporada é a mais dinâmica até aqui. Foi significativo o desenvolvimento de enredos e personagens paralelos que se tornaram importantes e/ou que aguçaram nossa curiosidade, por exemplo, Eduardo "Lalo", interpretado por Tony Dalton (Sr. Ávila) que, sem dúvida alguma, é o mais inteligente, carismático e desenvolto Salamanca que pisou no universo ficcional de BB e BCS. Eduardo “Lalo”, em alusão ao próprio nome, é o maestro dos Salamancas e é a partir dele que conhecemos com mais propriedade os tentáculos do poder dessa família e nos interrogamos se a sua decadência não tem a ver com o aparente sumiço desse personagem, objetivamente o número 1 na hierarquia Salamanca, visto que seu tio Hector exerce um poder apenas simbólico dadas as suas condições. Lalo, inclusive, embora apegado à família, atribui muitos dos atuais problemas aos seus próprios membros (seu tio é visto como irracional e seu primo como viciado). Depois dos minutos tensos protagonizados por Lalo, Wexler (Rhea Seehorn) e Goodman no episódio "Bad Choice Road", ampliados por uma direção de fotografia de Marshall Adams (El Camino) que explorou a luz do pequeno apartamento, Lalo teve que ouvir de Wexler aquilo que já sabe: ele precisa resolver os problemas de sua própria casa. É a partir desse confronto que Lalo muda de planos e decide fazer uma longa viagem com Vargas para o México. É pertinente lembrarmos que, até o episódio intitulado "Better Call Saul" da segunda temporada de Breaking Bad, o paradeiro de Lalo, assim como de Vargas é incerto – pelo menos para Goodman. Em suma, é importante enfatizar que “Lalo” é um indivíduo poderoso dentro do cartel e, por conta disso, esse personagem se constitui como o calcanhar de Aquiles na narrativa, afinal, se o seu sumiço na trama for aleatório, as consequências serão desastrosas perante a crítica especializada. No entanto, a depender dos desdobramentos na 6º Temporada, o recado dos roteiristas estará dado: nossas caixas de ferramentas continuam abertas.

Contudo, embora o fôlego ganho com a quinta temporada seja suficiente para outro spin-off, Gilligan e Gould estão numa encruzilhada e, vejam, uma encruzilhada é bem diferente de um beco sem saída, algo que atormenta muitos produtores do gênero. O trabalho deles, embora conservador, foi bem feito e fundamental para as opções de término que considero possíveis e das quais não me atentarei nessa crítica. Contudo, considero pertinente salientar que, conforme os estudos sobre à jornada do herói (de Campbell a Vogler), é possível que Gene Takavic, quer dizer, Goodman, volte para Albuquerque e contribua de alguma forma na resolução dos últimos acontecimentos de BB, afinal, é uma forma de se redimir de sua recusa em ajudar Walt no penúltimo episódio. Uma volta triunfal como essa é convencional e causará surpresa em 0% dos roteiristas clássicos. Um final assim explicaria os porquês de alguns personagens não serem abandonados ao longo da série, antes abdicarem em parte de seus interesses em prol do fluxo da história. É o caso de Kim Wexler que, já que nunca mudará Jimmy, resolve mudar um pouco a si mesmo. 


Se esse término mainstream não ocorrer, o que sobra? O nada. E esse final seria tão fascinante quanto o outro, posto que a pergunta capciosa de Mike feita para Goodman no deserto não precisa encontrar receptor. McGill não precisa ter propósito e estaria, assim, numa outra jornada – bem diferente daquela do herói, claro – mas coerente com seus dilemas existenciais.

Para finalizar é preciso reconhecer que Better Call Saul deixou de ser a muito tempo um arremedo comercial de BB e, por mais difícil que isso possa ser, devido às qualidades inegáveis desta última, BCS pode ter um final ainda mais sensacional. Para isso, a receita tradicional até aqui tem funcionado e é chegada a hora de James McGill se assumir como o herói de mil faces, ou, quiçá, se assumir de vez como um exemplar do absurdo "camusiano".

Os dois caminhos são seguros e dignos e independente o qual for tomado, a série já alcançou um patamar que poucas conseguiram chegar.



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