segunda-feira, 22 de novembro de 2021

Deserto Particular | CRÍTICA


A masculinidade heteronormativa é um caso estranho. Entre constantes necessidades de autoafirmação, recorre-se a qualquer coisa, roupa, ato, profissão para reforçar o gesto de macho – e há quem tenha acreditado que votar em um certo candidato anos atrás também contribuiria nessa imagem. Mas um homem quando está apaixonado é capaz de desmoronar e deixar todas essas poses de lado para conseguir o que quer, algo que Deserto Particular se debruça em mostrar os homens hesitantes do Sul ao Nordeste do país.


Dirigido por Aly Muritiba (série O Caso Evandro, Ferrugem) a partir do roteiro do mesmo escrito com Henrique dos Santos, o filme concentra-se inicialmente em Daniel (Antonio Saboia, Bacurau), um policial militar afastado por um incidente violento que o coloca em crise além de ter um pai debilitado (um sargento aposentado) e, cada vez mais, pelo fato de sua correspondente a distância de nome Sara não retornar suas mensagens. Na tentativa de se reestabelecer na carreira e no convívio familiar intrincado, Daniel se vê impulsivo em partir de Curitiba rumo ao norte da Bahia em busca daquela que tanto lhe faz bem, muito embora tenha sumido da esfera virtual. 

(© Pandora Filmes/Divulgação)

Enquanto uma narrativa de redescobertas, Deserto Particular nos agracia também com a jornada de Robson (Pedro Fasanaro), um rapaz de personalidade radiante justamente pela forma como enxerga a vida. Ele não se queixa de descarregar sacos de frutas e legumes debaixo do sol de Sobradinho e Juazeiro, tem no cabeleireiro Fernando (Thomas Aquino, série Manhãs de SetembroBacurau) o seu melhor confidente e ainda se mostra zeloso com a avó ao acompanhá-la nos cultos evangélicos. Aliás, é curioso notar como Muritiba tem o costume de inserir igrejas neopentecostais em seus filmes (vide Para Minha Amada Morta) em sua dualidade que evidencia a salvação para uns, mas que também não deixa de ser um purgatório antecipado para outros. Aqui, não poderia ser diferente e se torna um antagonista para Robson, entre tantos que o garoto vem a ter quanto a sua identidade.

(© Pandora Filmes/Divulgação)


Ganhador do prêmio do público no Festival de Veneza, Deserto Particular tem na direção de fotografia de Luis Armando Arteaga (As Herdeiras) outro destaque. Todavia a produção recorra ao hábito de compor os cenários curitibanos em tons frios, o calor baiano ganha um contraste forte e é provável que a cena na barca para Petrolina com o Rio São Francisco refletindo o por-do-sol seja um dos momentos mais bonitos do longa entre pares de cenas com locações deslumbrantes e diálogos inspirados, contando com a trilha sonora sutil de Felipe Ayres.


Cena diante da represa do Rio São Francisco reserva um dos momentos mais sublimes entre Daniel e Robson.
(© Pandora Filmes/Divulgação) 

Para quem espera um drama de intensidades, há de assistir a um conto introspectivo que, inegavelmente, recorda as ilustres filmografias de Karim Aïnouz e de Marcelo Gomes, seja pelo perfil comum de personagens, pelas locações e até pela divertida seleção de músicas bregas, todavia sem a mesma paixão ardente característica – quiçá os protagonistas se permitissem se conhecer sem recorrer a autodestruição para que desencadeasse isso. Ainda assim, para um ensaio sobre a desconstrução do macho tradicional e de todo o imediatismo líquido em relacionamentos (o excesso de mensagens para Sara cobrando atenção pontual da mesma, por exemplo), há muito em consideração aqui e a refletir. O que está em jogo em Deserto Particular é o fato de que, agora ou talvez amanhã, é possível deixar as antigas convenções definharem para se permitir amar a quem justamente lhe faz bem.



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