Em mais de uma década onde o cinema brasileiro se viu projetar pares de histórias de celebridades que tanto moldaram a cultura popular nas últimas décadas, a ideia de uma cinebiografia de Hebe Camargo vem mais do que em boa hora, ainda mais considerando todo o carisma enorme da apresentadora, falecida em setembro de 2012, que sempre encerrava as noites de segunda-feira com seus convidados ilustres e papo inteligente, porém descontraído a todos os gostos. Evitando os clichês narrativos típicos das
biopics (em suma, toda aquela construção didática que costuma abordar da infância até a fase adulta da personagem),
Hebe - A Estrela do Brasil encanta e também conscientiza ao fazer um conveniente recorte de um período de transições para o país e para uma mulher que sempre esteve à frente do seu tempo.
Entre 1985 e 1986, o Brasil se vê livre da ditadura militar, mas não do órgão da censura. Na Rede Bandeirantes, Hebe (
Andrea Beltrão) começa a apostar em atrações extravagantes além do hit juvenil do Menudo, passando a convidar artistas desbocadas como Dercy Gonçalves e dar visibilidade para
performers e para Roberta Close, a primeira modelo trans no país – tipos mínima e desrespeitosamente taxados de "bichas" para a parcela conservadora e paternalista. Dentro de casa, Hebe surge como uma figura solitária, mas que não economiza no amor que tem pelo filho, o introvertido Marcello (
Caio Horowicz), e na relação conturbada com seu marido, Lélio Ravagnani (
Marco Ricca), que parece se incomodar com a ascensão e as atitudes da esposa na televisão, ainda mais quando conquista uma relativa maior liberdade de expressão no SBT – um paralelo irônico tendo em vista o recente retrocesso de Silvio Santos em sua inclinação perante a cartilha bolsonarista.
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(© Warner Bros. Pictures/Divulgação) |
Roteirizado por
Carolina Kotscho (
2 Filhos de Francisco),
Hebe conta com uma notável direção de
Maurício Farias que, por sua vez, não se deixa vencer para a antiga linguagem televisiva e investe em planos longos e abertos quando encena as gravações dos programas ou no caso da então vedete adentrando a sua casa tão carente de luz, rendendo um bom plano-sequência sem necessariamente ser virtuoso com movimentos de câmera arrojados. Quando há
closes e demais detalhes, tudo é bem composto, há trabalho na profundidade de campo (atenção para a cena do closet) e um brilho que não reluz apenas da valiosa joalheria ou dos vestidos chamativos da apresentadora, que é rodeada também por outras figuras marcantes da época –
Karine Teles é Lolita Rodrigues,
Otávio Augusto faz Chachinha enquanto
Daniel Boaventura estranha como Silvio Santos; participações especiais, entretanto, sem a mesma incorporação dedicada pela protagonista do filme.
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(© Warner Bros. Pictures/Divulgação) |
Personagem televisiva de características tão marcantes e momentos que repercutem até hoje nas redes,
Hebe (papel e filme) não funcionaria caso sua atriz não fosse tão competente e versada como
Andrea Beltrão. O público acostumado com as personagens cômicas da artista vão e devem se surpreender com uma performance bastante inspirada e que torna Hebe mais do que uma dondoca comunicativa, mas uma mulher que não hesitou em ser imponente quando preciso para defender os seus interesses, assim como não recusa a se divertir e beber com as amigas ou dançar na pista ao alto e bom som de Roberto Carlos, requisitando os seus momentos de prazer em casa também. Tamanha interpretação completa assim, Andrea nos faz rir e simpatizar com a sua versão de Hebe com facilidade (uma das cenas iniciais em que é ouvido um trecho do programa de rádio de Nair Bello já garante isso) a ponto que as quase duas horas de projeção passam batidas mediante um entretenimento pensante.
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(© Warner Bros. Pictures/Divulgação) |
Todavia o roteiro flerte em abordar subtramas que se dissolvem com pouco caso (os momentos de Marcello com o pai, interpretado por
Gabriel Braga Nunes, por exemplo) e que o excesso de mímese de algumas celebridades ao redor contrastem com a magistral performance de Beltrão,
Hebe - A Estrela do Brasil é um retrato fascinante e perspicaz não só por suas desenvolturas técnicas e artísticas, mas por seu nobre intuito de resgatar reflexões levantadas pela apresentadora há mais de trinta anos, restando uma esperança para que o público esteja mais disposto para isso do que naquela época cujas mazelas ainda persistem em ecoar em nossa atualidade.
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