A partir de seu coro crítico na revista Cahiers du Cinéma e daí revelando diretores notáveis como Alain Resnais, Claude Chabrol, Eric Rohmer, François Truffaut e Jean-Luc Godard, a Nouvelle Vague foi uma divisora de águas do Cinema Francês na década de 1960 não só por prosperar a valorização da figura do diretor e do cinema autoral, mas como a ideia de fazê-lo a partir de métodos práticos e anticonvencionais que o distinguiria de outros filmes cheios de pompa vigentes da época, o que incluía a inserção de um pensamento crítico (seja social, econômico e/ou político) em paralelo com os arcos dramáticos da narrativa. Tal intelectualismo da Nouvelle Vague, por outro lado, conferiu a uma parcela da cinefilia a impressão de que a filmografia produzida no período e, mais ainda, seus respectivos cineastas eram imaculados e superiores ao "cinema de massa" ou, em outras palavras, o cinemão hollywoodiano abarrotado de elencos cosméticos, explosões e demais efeitos milionários e trilhas sonoras estridentes. Logo, se a proposta de fazer uma biopic de uma das mentes mais radicais da "nova onda francesa" parecia calamitosa para seus aficionados, eis que o novo filme de Michel Hazanavicius (O Artista) é um delicioso revival da época e do que há de melhor na filmografia do formidável cineasta retratado.
Lá por 1967, a Nouvelle Vague estava mais que consolidada na França que se agitava no que viria a ser o expressivo movimento de Maio de 68, mas até lá Jean-Luc Godard já era um cineasta famoso e, segundo conta O Formidável (Le Redoutable), as pessoas gostavam dos seus filmes justamente porque eram engraçados, mas não foi isso que encontraram quando viram A Chinesa, o primeiro de muitos filmes-manifesto pró-comunistas-maoístas que Godard faria nos anos seguintes com o Grupo Dziga Vertov. No entanto, foi nos bastidores desse filme que tanto dividiu opiniões que o cineasta se apaixonou pela atriz Anne Wiazemsky em uma reciprocidade que não só rendeu uma acalorada relação, como parceiros de cinema e de protestos nas ruas, universidades e onde mais o cineasta quisesse expor sua opinião. Só que, aparentemente, aturar diariamente um companheiro com o gênio forte e de pensamentos a mil como o de Godard não é lá aquelas maravilhas, senão uma vida relegada ao segundo plano.
Apesar de o roteiro de Hazanavicius ser inspirado no livro autobiográfico de Wiazemsky, há muito mais de Godard como personagem do que do próprio ponto de vista da (recém-falecida) atriz dentro da sua história, afinal (ou pelo que dá para entender), ela era apenas um satélite rodeando o grande ego do cineasta pelos anos que ficaram juntos, acossada a agir como uma atriz no próprio casamento e seguindo as ordens de seu marido-diretor. Interpretados com maestria por Louis Garrel (Os Sonhadores) e Stacy Martin (Ninfomaníaca), o casal apresenta uma cumplicidade inicial carregada de sensualidade e diálogos sagazes enquanto a própria França de 67 a 68 se torna uma personagem e que torna a influenciar diretamente a relação dos dois a partir das tantas manifestações verbais ou do crescente interesse de Godard por figuras de pensamento comunista, tal como seu futuro colega Jean-Pierre Gorin, ou ainda um breve encontro com Bernardo Bertolucci. Nesse ponto, o filme se torna um material caprichado ao balancear os elementos históricos com o tragicômico casamento de Jean-Luc e Anne, mas são justamente os artifícios narrativos de O Formidável que o fazem ser uma obra mais interessante pelos seus meios do que pelo seu drama propriamente dito.
Assim, Hazanavicius se inspira claramente na mise-en-scène e nas cores dos próprios filmes de Godard como Uma Mulher É Uma Mulher, O Desprezo, Pierrot Le Fou e até mesmo no infame A Chinesa estabelecendo cenários, enquadramentos e marcações de elenco característicos dessa primeira fase da filmografia do cineasta, vide os planos em que os atores aparecem de perfil ou discutem a relação no aconchego do lar, a divisão da narrativa em capítulos, a insistência de travellings como movimento, o uso da câmera de filme Super 8 na manifestação ou ainda as quebras da quarta parede (com os personagens falando diretamente para a câmera) e frases escritas em paredes ou muros reforçando o discurso verbal também dão as caras aqui. Legendas revelam o verdadeiro significado de cada fala em uma conversa no café-da-manhã e sons têm uso além de sua função diegética, destacando-se aí sua funcionalidade cômica (a máquina de escrever, a câmera como uma pistola) em meio ao afiado roteiro que certamente levará os espectadores a (re-)descobrirem as riquezas culturais da Nouvelle Vague ou assistirem aos filmes com novos (e pacientes) olhos.
Ocasionalmente puxando por um cinema pastelão sem deixar de ser um "filme-cabeça", Le Redoutable é certeiro em todos os seus aspectos por mais que não sejam poucas as licenças poéticas (Godard não estava tão bloqueado criativamente entre 67 a 69) e que toda a sua metalinguagem fascina mais do que o caso de amor em questão. Não é por menos: em O Artista, Michel Hazanavicius bem ilustrou o medo que George Valentin (Jean Dujardin) tinha do cinema sonoro e agora a situação se repete em reverso ao mostrar o Godard de Garrel frustrado com a pouca expressividade intelectual nesse mesmo cinema falado e, quando há, é seguida de repreensões que condenam a obra à mais óbvia e fecal pejoração. Em tempos onde a acefalia rege uma legião conservadora, como comédia, O Formidável é um ótimo exemplar do gênero não só por cumprir uma sessão de risadas, como um bom convite ao pensamento – e que bom seria se o grande e jovem público fosse familiarizado com os nomes dos personagens para uma melhor apreciação do título, aparentemente relegado ao mesmo contingente da cinefilia.
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