quinta-feira, 7 de abril de 2022

A MESMA PARTE DE UM HOMEM – dualidade masculina explorada em tela | CRÍTICA


A Mesma Parte de Um Homem
 conta a história de Renata (Clarissa Kiste), uma mulher submissa que vive no interior com sua filha Luana (Laís Cristina) e seu marido Miguel (Otavio Linhares), inseridos em uma família patriarcal de origem humilde e compreendendo o medo do exterior como um sentimento comum. Após um acidente, um estranho chamado Luis (Irandhir Santos) aparece de repente e traz sentimentos conflituosos para a família.


O filme possui traços fortemente relacionáveis para boa parte das pessoas, com uma família tradicional, uma mãe subserviente, um pai tipicamente patriarcal brasileiro e uma filha em conflito com sua identidade. Isso pode descrever boa parte das famílias brasileiras, a diferença é que aqui há o elemento reclusão e distância do centro urbano, com um ambiente recluso e cru, que não está interessado em exaltar o bucolismo, mas sim retratar de maneira quase bruta o que é a vida na roça.

O constante medo de um invasor, muito presente na população rural, mas acima de tudo com as mulheres, que se enclausuram com medo do mundo externo e sofrem violência de quem está mais ao lado. O pai de família é filmado de uma perspectiva tão agressiva que transforma o ator Otavio Linhares em um grande urso, fisicamente imponente e uma barreira impossível de ser transposta.



Ao demonstrar a dicotomia de Miguel com Luis, o filme encontra seu ponto mais alto, onde as pequenas demonstrações de carinho, cuidado e até performance sexual mostram dois mundos paralelos. A diretora Ana Johann traz um cuidado muito particular em demonstrar pela mise en scène uma diferença brutal entre os papéis que cada personagem se comporta. Com isso, surgem pontos de superioridade e dominação pela personagem de Renata, que através do sexo mostra seus desejos e expõe em tela quais são seus reais interesses, quando tem a oportunidade de equalizar a relação.

Enquanto com o bruto Miguel a personagem é quase amordaçada na hora do sexo, com Luis, ela toma conta do momento e exprime seus próprios desejos, que vão para caminhos que jamais seriam aceitos por um homem com princípio de vida tão atrelado ao machismo.

Um destaque muito importante é a atuação de Laís Cristina como Luana, que, em seu primeiro filme, traz uma complexidade de gênero para uma garota que está descobrindo o mundo e em momento algum se conecta com signos atrelados ao feminino. Ela usa camisas e bermudas ao invés de saias, caça para comer e abdica de cores e elementos afim de expressar seu lado de menina. Um detalhe importante é a ligação de um “pai” para o outro, enquanto Miguel não dá bola para a sexualidade não por ser descontruído, mas por querer uma filha performando seu lado masculino, já Luis incentiva os signos masculinos nela, introduzindo peças de roupa tipicamente masculinas, com uma gravata em uma das cenas mais sensíveis do filme.

O escopo diminuto do longa é um convite a se relacionar com aqueles personagens, porque sabemos que existem milhões de brasileiros iguais, mas não apenas brasileiros e, sim, um tema universal.

Entre os destaques técnicos, a já citada mise en scène é brilhante com o pouco que tem e o tanto que conta, mas também o trabalho sonoro desse filme é um destaque. Em uma cena, Renata bate a cabeça na parede e esse som é muito mais alto do que realmente faria, mas a pontuação de algo que muda a trama vem por meio desse choque sonoro. O clima do campo é bem ambientado, com muitos pássaros e o som da chuva latente nas telhas.

A interpretação do filme pode caminhar até para caminhos mais metafísicos, como reencarnação, transferência de alma, substituição através do luto, negação e várias outras vertentes, como também pode ser apenas algo mais calcado na realidade onde um acidente apaga anos de memória de um homem e ele assume que as pessoas que o socorreram são sua família.

Ao final, é importante destacar uma emancipação de Renata e Luana, que se veem frágeis e acreditam em uma mentira para confortá-las, ao mesmo tempo em que percebem o quão nocivo pode ser esse controle e essa dependência de um homem para seguirem suas vidas.

A Mesma Parte de Um Homem é um relato muito interessante de como a masculinidade pode ser distinta e frágil, bem como a busca pela independência das mulheres parte de pequenos atos. É quase um estudo de como o patriarcado pode ser bruto e rude, mas também pode ser manso e gentil.




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