domingo, 17 de novembro de 2019

A Vida Invisível | CRÍTICA


Fazendo um sumo retrospecto, é possível dizer que a filmografia de Karim Aïnouz, além de trabalhar com elenco sempre notório e talentoso (Lázaro Ramos, Hermila Guedes, Wagner Moura), é marcada por personagens femininas que não hesitam em atravessar os obstáculos impostos para realizar seus desejos e intuições. Elas viajam para longe, questionam tabus e até mesmo se rifam, se for necessário, deixando as consequências à beira da estrada. Seguindo por esse caminho enquanto bem se envereda por outros, o mais novo longa do diretor encontra na literatura uma história bela e estonteante sobre a perseverança de duas irmãs ambiciosas perante a tantas imposições morais de uma época que se dizia progressista.


Inspirado no romance escrito por Martha Batalha, a trama de A Vida Invisível remonta ao Rio de Janeiro da década de 1950, onde as irmãs Guida (Julia Stockler) e Eurídice Gusmão (Carol Duarte) vivem com os pais, imigrantes portugueses, e sonham com os primeiros passos da vida adulta: a primeira, mais impulsiva, estima a sua vida ao lado de Yorgos, um marinheiro grego que conhecera na noite carioca; a segunda, pianista de mãos habilidosas, também pensa em atravessar o Atlântico, mas para ter seu talento reconhecido no conservatório de música da Áustria. No entanto, a maternidade e o matrimônio um dia chegam para aquelas irmãs que eram tão cúmplices uma para a outra e, a partir do momento em que se encontram sozinhas e cerceadas pela opressão paternalista, cabe às duas se prenderem às contadas narrativas de felicidade que, supostamente, cada uma está vivendo somando as suas expectativas de se reencontrarem.


Universo melodramático onde mulheres (mães e filhas) veem sua inocência e liberdade serem consumidas por sua gradual submissão a homens fisicamente decadentes e opressores ao lhes incumbir o sonho único de constituir uma família, onde pobres sorriem abertamente dando seu jeitinho para sobreviver e até fazer uma aconchegante ceia de Natal, é fabuloso como Aïnouz, juntamente com a ótima diretora de fotografia Hélène Louvert (Lazzaro Felice), registra as jornadas das irmãs Eurídice e Guida com um toque intimista. Ao passo em que a tríade figurino, cabelo e maquiagem reforça o trabalho das atrizes em suas transformações de jovens para mulheres seguindo as datas nas cartas anunciadas, cada vez mais nos simpatizamos e nos tornamos cúmplices de suas vidas, mais ansiamos para que a primeira se livre da obsessão de Antenor (Gregório Duvivier) e que se reencontre o quanto antes com a irmã que, por sua vez, descobre ter uma nova família no subúrbio carioca; uma que dá seus jeitinhos para ser feliz mesmo com tão pouco.



Injetando suspense a partir do momento em que um detetive chega à trama sem necessariamente parecer sombrio como gênero costuma ser estagnado, Aïnouz realiza momentos emblemáticos no mesmo nível dos cineastas clássicos do passado enquanto a música por vezes sai da diegese em meio a uma decupagem estratégica. A cena no restaurante no Natal, por exemplo, emociona não só pela injustiça ali praticada contra uma mãe solteira e sua amiga, negra, mas por se deixar demorar em planos que potencializam o trabalho do elenco. Daí em diante, é curioso perceber como o longa denota as consequências de cada simples gesto e mentiras contadas, transcendendo a reflexão para a nossa realidade sem querer demonizar o conceito de "família": quantas mulheres deixaram suas ambições minguarem por causa de casamentos arranjados, por serem expulsas pelos pais, por estarem prontas apenas para terem mais filhos? Algumas respostas ficam no ar; já outras, desfocadas.


Daí a entrada de Fernanda Montenegro no que pode ser entendido como o epílogo do filme. Conectando o passado e o presente com uma elipse formidável, as revelações finais não poderiam ser menos emocionantes para a Eurídice idosa, ainda mais quando a nonagenária atriz surpreende mesmo que o roteiro forneça tão pouco tempo de tela. Do que é irreversível, mas sujeito a uma compensação reconfortante a partir de um abraço a uma jovem, A Vida Invisível é um deleite visual que, além de todos os seus méritos técnicos e artísticos, estremece e ecoa pensamentos especialmente quando precisamos cada vez mais de um cinema sensível e reflexivo.



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