quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Coringa | CRÍTICA


Existe um diálogo em Batman - O Cavaleiro das Trevas em que o vilão comenta o quanto o herói mudou as coisas para sempre; uma frase que poderia igualmente classificar a performance de Heath Ledger como o próprio Palhaço do Crime, tão extremo em seu peculiar método de incorporação ao papel que lhe rendeu um Oscar póstumo e a aprovação plena do público, alçando tanto personagem como artista a um patamar lendário, senão imbatível. 

De 2008 para cá, ter um ator interpretando novamente o Coringa, então, passava a se tornar uma tarefa de grande responsabilidade mediante esse grau de complexidade imposto ao personagem (daí as várias fofocas, muito que marqueteiras, sobre as apelações de Jared Leto com várias brincadeiras de mau gosto nos sets de Esquadrão Suicida), ao mesmo tempo em que o arqui-inimigo do Batman recebia traços mais horripilantes em suas fases recentes nos quadrinhos da DC. Ser o "Palhaço do Crime", portanto, já não se resumia (apenas) a representar um vilão de gargalhadas medonhas, apertos de mão eletrocutados, ou ainda expelir gases e ácidos mortais, mas entender e se colocar na pele de um sujeito fragilizado dono de uma mente tão perturbada de pensamentos negativos que precisa do caos e da violência para sobreviver.



(© Warner Bros Pictures/Divulgação)

Sem quaisquer ligações com as digressões cinematográficas anteriores do universo Batman a não ser referências sutis de fitas setentistas como obras de Martin Scorsese (cotado inicialmente para a produção), eis que Coringa é um filme com uma maturidade surpreendente e necessária em sua narração que vai além do retrato de um homem desprovido de privilégios e que torna a fazer "justiça" com as próprias mãos e concepção, mas também sobre uma cidade cujo sistema corrupto vem adoecendo seus cidadãos lhes privando de recursos básicos desde a coleta de lixo a tratamento psiquiátrico. A Gotham City que o diretor Todd Phillips (trilogia Se Beber, Não Case!) concebe é ensolarada, contrastada em amenos tons pastéis, mas nunca fora vista tão suja, marginalizada e até mais anárquica do que as versões de Tim Burton (gótica e fria) e de Christopher Nolan (esterilizada). Aqui, Gotham é um simulacro da Nova York do início dos anos oitenta, de filmes como Operação França, O Rei da Comédia e Taxi Driver que, mais do que suas semelhanças de pano de fundo, tendem a auxiliar na composição do infame personagem.

(© Warner Bros Pictures/Divulgação)

Dando uma história completa ao vilão, a dupla de roteiristas formada por Phillips e Scott Silver concede nome, profissão e até família para aquele que posteriormente será chamado de Coringa, mas, antes de uma sucessão de dias ruins e uma incômoda revelação, Arthur Fleck é um homem triste e decadente que sonha em sair de seu ofício de palhaço de rua para se tornar uma estrela da comédia stand-up nos palcos do badalado talk show de Murray Franklin (Robert De Niro) na televisão. Em seu insucesso, porém, cabe a Arthur cuidar de sua mãe (Frances Conroy) que, por sua vez, demonstra estar cada vez mais lunática em sua crença de que o magnata Thomas Wayne (Brett Cullen) irá ampará-los considerando a situação deplorável que vivem.

(© Warner Bros Pictures/Divulgação)

Em uma tremenda e complexa encarnação que reconhece seu viés patológico, Joaquin Phoenix é extremamente competente na composição do personagem, tornando-o digno de compaixão por sua mundanidade e voz afável, todavia seja um homem feio, de físico esquelético e contorcido e que mais assusta do que alegra as pessoas ao redor com sua risada involuntária que tenta omitir suas constantes frustrações com o cenho quase sempre franzido. Dito isso, é interessante notar também como o ator é soberbo na transição de suas expressões faciais à medida em que o personagem adere à vilania, adotando aí um semblante mais sereno e uma postura equilibrada que o faz progredir em sua imponência e ameaça enquanto abre e se deleita com um sorriso não menos que maléfico.

(© Warner Bros Pictures/Divulgação)

Ao passo em que a fotografia de Lawrence Sher (Godzilla II: Rei dos Monstros) demonstra composições inteligentes (reparem como Fleck é ocasionalmente enquadrado deslocado para então surgir centralizado e acima da situação mediante o efeito do ângulo contra-plongée) e a trilha sonora de Hildur Guðnadóttir (série Chernobyl, Maria Madalena) é minimalista, mas poderosa em seu efeito melancólico no toque das cordas, Coringa é astuto em apontar o quanto a elite é favorecida pelo sistema que compreende desde a política à cobertura midiática. Populares protestam coléricos nas ruas enquanto a classe rica se entretém assistindo a uma exibição de Tempos Modernos (o que aumenta a ironia de, às custas do esforço braçal de seu proletariado lá fora, estarem rindo do operário vivido por Chaplin, que criticava o abusivo padrão capitalista) e o sistema de saúde se vê ruir com sua verba contingenciada; assediadores assassinados são vitimizados nos jornais pelo fato de serem executivos brancos e laudos médicos distorcem possíveis verdades, favorecendo quem possui maior influência.

(© Warner Bros Pictures/GIPHY/Reprodução)

Apesar de Todd Phillips parecer se portar tão oportunista quanto Alejandro G. Iñárritu fora com Birdman anos atrás numa ganância e pretensão por láureas (o Leão de Ouro do Festival de Veneza já está garantido) ao invés de agradar puristas e se mostrar fiel às características impressas nos quadrinhos, todavia lúcido em questionar o quanto aquilo que é visto é real ou alucinação, Joker (no original), então, se torna mais do que um mero conto sobre uma origem inédita de um antagonista impactante, porém uma reflexão plausível sobre uma sociedade em cólera que não consegue (ou se recusa) a antecipar o peso de suas consequências, alçando um louco que apenas veio a catalisar suas reações insanas. 

Calamitoso e avassalador, Coringa volta a nos inquietar com excelência – e que isso seja um estopim para que não deixemos vingar o que há de pior em nós ou em outros.



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