quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Bingo: O Rei das Manhãs | CRÍTICA


Foi mais ou menos na década de 1980 que a televisão brasileira começou a se firmar como a conhecemos hoje e isso vai além do aumento de aparelhos televisores nos lares ou de qualquer efeméride política e/ou socioeconômica a favor disso. Da sua acessibilidade de conteúdos informacionais e de entretenimento ao crescente culto às personalidades televisivas, onde programas, novelas e personagens cada vez mais passavam a influenciar o pensamento e o estilo de vida das audiências, ainda assim, faltava à TV uma cara mais malemolente e que provesse a diversão que o público tanto queria após anos e mais anos de censuras providas pela ditadura militar. O que não esperavam era que um ator vestido de palhaço começasse com essa inesperada e debochada subversão em pleno horário infantil e, o que não era sabido, seus esforços e absurdos por trás de tudo isso.

Portanto, não é cedo demais para afirmar que Bingo: O Rei das Manhãs marca uma eficaz e bem-vinda repaginada à produção de cinebiografias de artistas brasileiros e que se tornou sinônimo de uma boa bilheteria logo quando a temática já demonstrava sinais de desgaste em sua estrutura narrativa ainda pensada para a linguagem televisiva. Logo, quando o diretor Daniel Rezende (até então editor de longas como Cidade de Deus, pelo qual ganhou o BAFTA na categoria, A Árvore da Vida e RoboCop) e o roteirista Luiz Bolognesi (Elis) se inspiraram na história do ator por trás do primeiro palhaço Bozo brasileiro ou, mais precisamente, como Arlindo Barreto, um egresso da pornochanchada, fez de um enlatado personagem de sucesso nos Estados Unidos no atrevido ídolo da garotada e que também deu partida às brigas de audiência entre os canais que viriam a ficar mais acirradas na década seguinte, ao que dá a entender. Impasses com direitos autorais a parte, a criatividade fala mais alto: Bozo vira Bingo, emissoras de TV e demais personagens também ganham seus nomes fictícios, Arlindo é Augusto Mendes que, por sua vez, é interpretado por um Vladimir Brichta brilhante e indefectível.



Se um dos êxitos de Bingo é justamente seu elenco que tira de letra performances tão marcantes quanto a do protagonista, em especial Leandra Leal, Augusto Madeira, Ana Lúcia Torre e o garoto Cauã Martins, é mais do que evidente que a narrativa arquitetada por Bolognesi muito trabalha a favor disso inserindo as ações e falas no momento certo além da sua habitual tarefa de reconstituir a época em questão. Dessa forma, incidentes envolvendo núcleos familiares não são tratados como muleta narrativa apenas para alcançar os "melhores momentos" da carreira do personagem, mas como o cerne dramático primordial que será influenciado pelas escolhas extremas do protagonista da sua ascensão até o seu declínio inestimado. Logo, se a maior felicidade de Augusto era estar ganhando bem em seu cargo na TV, podendo dar uma vida melhor para o filho e uma brecha para a mãe voltar às novelas ao invés de ficar atrás da bancada de show de calouros, todo o esforço por trás do sucesso do palhaço lhe demandava novas doses diárias de inspiração que, somada a tensão nos bastidores, não vinha assim tão fácil – ou era pelo risco dos improvisos ou pelo delírio das drogas que, cedo ou tarde, não seriam mais discretos. O filme também acerta ao evitar um maniqueísmo de culpar Augusto/Bingo de tudo o que acontece de ruim a ele e às pessoas ao seu redor e, por mais que ele não seja isento de erros, pairam as perguntas no ar: seria o ator insano de nascença, teria sido o cinegrafista a má influência ou o astro acabou sendo vítima do sistema exigente e restritivo do audiovisual como um todo que pinça os poucos (o que não quer dizer que sejam os melhores) com seu prazo de validade inferior ao da data do contrato?



Apresentando uma inteligente composição das cenas que recorrem aos closes e os picotes de planos para contraplanos apenas quando é necessário, Rezende conta com a virtuosa direção de fotografia de Lula Carvalho (As Tartarugas Ninja: Fora das Sombras) para além da exposição de planos longos com movimentos de câmera ousados e seu desenho de luz bonito de se ver graças às confortáveis luzes quentes. A dupla também recorre ao simbolismo das luzes e das sombras e que fala muito mais do que qualquer fala ou diálogo, vide a perspectiva focada no iluminado retrato pintado de Marta (Torre) em seus áureos tempos e a expressiva saída de Augusto do estúdio com os refletores sendo apagados um por um, ecoando com um evento anterior relacionado àquele citado primeiramente.


Em suma, se o longa tem falhas, elas passam despercebidas mediante suas tantas coisas boas. Da montagem reverente que sabe a hora certa para cortar e ao bem se apropriar de elipses e demais usos de raccord (a dança da Gretchen, interpretada por Emanuelle Araújo, é um exemplo claro e divertido por si só), de suas brincadeiras metalinguísticas (sobre o personagem gringo ler a legenda inserida para cobrir os diálogos em inglês), da ótima ponta de Domingos Montagner e suas aulas de circo, da equipe técnica de primeira linha e talentosa, da trilha sonora que move a trama e auxilia nesse túnel do tempo, sem se esquecer de sua inventiva catarse, Bingo: O Rei das Manhãs é um programa de entretenimento pensante que, nas entrelinhas, ainda reflete sobre o perfil do brasileiro nesses quase 40 anos. Por todos esses bons motivos (e outros mais que ficam para você descobrir, amiguinho), Bingo não só é o seu subtítulo que o embala, como a melhor produção cinematográfica brasileira de 2017.




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